(...( Ricardo Reis baixa o jornal, olha-se no
espelho, superfície duas vezes enganadora porque reproduz um espaço profundo e
o nega mostrando-o como mera projeção, onde verdadeiramente nada acontece, só o
fantasma exterior e mudo das pessoas e das coisas, árvore que para o lago se
inclina, rosto que nele se procura, sem que as imagens de árvore e rosto o
perturbem, o alterem, lhe toquem sequer. O espelho, este e todos, porque sempre
devolve uma aparência, está protegido contra o homem, diante dele não somos
mais que estarmos, ou termos estado, como alguém que antes de partir para a
guerra de mil novecentos e catorze se admirou no uniforme que vestia, mais do
que a si mesmo se olhou, sem saber que neste espelho não tornará a olhar-se,
também é isto a vaidade, o que não tem duração. Assim é o espelho, suporta,
mas, podendo ser, rejeita. Ricardo Reis desviou os olhos, muda de lugar, vai,
rejeitador ele, ou rejeitado, virar-lhe as costas. Porventura rejeitador porque
espelho também.
José
Saramago, O ano da morte de Ricardo Reis,
21.a edição, Caminho, 2013, p. 67
[sublinhados
acrescentados]