quinta-feira, 20 de agosto de 2015

O verdadeiro Escritor

[leitura concluída ontem, no T. do Palácio, visto que a General...]

Recorte:
       Quinta, dois.
        — As pessoas julgam a literatura um campo adicional de experiências, diz Pip, mas esquecem que é uma experiência virtual, que não pode ser utilizada de modo efectivo. Um autor põe em cena personagens que travam as lutas a que ele próprio se esquiva, fica tranquilamente sentado enquanto as personagens se debatem, uma parte dele expõe-se, enquanto a outra fica resguardada em casa, atrás do vidro, com os pés bem quentes diante da lareira. E o leitor, autor virtual, repete a mesma experiência, duplamente frustrante, […]
         — Mas no fundo tu venderias a alma ao diabo para seres capaz de escrever um livro, grito, porque hoje finalmente ele me exaspera.
         — É, era eu que deveria escrever livros, diz ele sem se alterar, tenho tudo na mão para escrever livros, o olhar certo, a palavra certa, […]   […] mas a literatura não se justifica e por isso não escrevo, porque o que não se justifica não merece ser feito, mas nem por isso deixo de ser escritor. Embora nunca vá escrever, não deixo de ser escritor — o verdadeiro escritor é justamente o que tem consciência da impossibilidade de escrever.
          — E os que escrevem livros são o quê? pergunto, furiosa.
         — São escribas, diz ele. Passam com desembaraço por cima de todas as dificuldades, por pura incapacidade de as ver. É o que se passa contigo.


Teolinda Gersão, Os guarda-chuvas cintilantes — Cadernos I – diário, 3.ª ed., Sextante, 2014, pp. 64-66 [texto truncado]

Outros Recortes: AQUI e AQUI