quarta-feira, 19 de agosto de 2020

Tempo (Contas ao) - Nuno Júdice

[dos oito livros trazidos para a Zmab, só o último de Júdice é de poesia...; 

- D. continua atento às Marcas que o Tempo Pandémico imprime em certos Rostos,...]

            CONTAS AO TEMPO

Era outro tempo o tempo em que pensávamos
que era o nosso tempo, sem saber que nenhum tempo
é nosso quando nos preocupamos com o tempo. Talvez
os relógios não andassem na hora certa, e quando queríamos
saber o tempo, já tinha passado o tempo que tínhamos
combinado, ou tínhamos chegado mais cedo pensando
que era tarde. O tempo vivia na nossa cabeça, e quando 
ouvíamos bater o ponteiro dos segundos não tínhamos tempo
para ouvir as perguntas que tínhamos de ter ouvido, mesmo
que não soubéssemos que resposta tínhamos para dar. Era
o tempo em que olhávamos para o tempo como se fosse
outro tempo, e devíamos ter sabido que era o nosso tempo,
embora o tempo não seja uma propriedade, não se possa
comprar como se fosse uma coisa, e não se possa 
vender como se alguém o pudesse comprar. Era
assim o tempo quando o contávamos, sem saber nada
da sua matemática, e só quando o perdíamos fazíamos 
de cabeça as contas que tínhamos errado. E agora,
com esse tempo a correr atrás de nós, dizemos-lhe
que já não precisamos de mais tempo como se,
alguma vez, nos tivéssemos preocupado com a falta
que o tempo nos faz.

Nuno Júdice, Regresso a um cenário campestre (2020), p. 41